19 de setembro de 2010

Sabiá com trevas


IX

O poema é antes de tudo um inutensílio.

Hora de iniciar algum
convém se vestir roupa de trapo.

Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.

Faz bem uma janela aberta
uma veia aberta.

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
enquanto vida houver.

Ninguém é pai de um poema sem morrer.


VI

Há quem receite a palavra ao ponto de osso, oco;
ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na
sarjeta.
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las
pro chão, corrompê-las
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Sonho exercer com elas o ofício de criado:
usá-las como quem usa brincos.



Manoel de Barros

Do livro: "Arranjos para Assobio", Editora Record, 1998, RJ

3 comentários:

Fred Benning disse...

Grande Manoel de Barros!
Muito bom!
Amo vc!
Bjs

Eurico disse...

Quem pode com um poeta assim!!!
Dá-me vertigens...rs

Abç

Raquel Mendonça disse...

Meu poeta preferido, que como menino brinca de escrever!
Obrigada