23 de março de 2012

Não Sei Quantas Almas Tenho


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não atem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.
 Fernando Pessoa

14 de agosto de 2011

A Menina dos fósforos


Estava muito frio, a neve caía e já estava começando a escurecer. Era a noite do último dia do ano. Uma menina descalça e sem agasalho andava pelas ruas, no frio e no escuro. Quando atravessou correndo para fugir dos carros, a menina perdeu os chinelos que tinham sido da mãe e eram grandes demais. Um ela não achou mais e um garoto levou o outro, dizendo que ia usar como berço quando tivesse um filho.

A menina já estava com os pés roxos de frio. Tinha um pacotinho de fósforos na mão e outro no avental velho. Naquele dia não tinha conseguido vender nada e estava sem um tostão. Com frio e com fome, ela andava pelas ruas morrendo de medo. A neve caía no cabelo cacheado, mas ela não podia pensar nem no cabelo nem no frio. As casas estavam iluminadas e havia por toda parte um cheirinho gostoso de assado de ano novo. Era nisso que ela pensava.

Num cantinho entre duas casas, ela se encolheu toda, mas continuava sentindo muito frio. Voltar para casa, nem pensar: sem dinheiro, sem ter vendido nada, era certo o castigo do pai. Além do mais, a casa deles também era muito fria, sem forro e com o telhado cheio de furos e emendas, por onde o vento entrava assobiando.

Com as mãos geladas, pensou em acender um fósforo. Conseguiu. A chama pequenina parecia uma vela na concha da mão. A menina se imaginou diante de uma lareira enorme com o fogo esquentando tudo e ela também. Mas logo a chama apagou e a lareira sumiu. Ela só ficou com o fósforo queimando na mão.

Acendeu outro que, brilhando, fez a parede ficar transparente. Ela viu a casa por dentro: a mesa posta, a toalha branca, a louça linda. O assado, o recheio, as frutas. Não é que o assado, com o garfo e faca espetados, pulou do prato e veio correndo até onde ela estava?
Mas o fósforo apagou e ela só viu a parede grossa e húmida.

Acendeu mais um fósforo e se viu junto de uma belíssima árvore de Natal. Maior do que uma que tinha visto antes. Velinhas e figuras coloridas enchiam os galhos verdes. A menina esticou o braço e… o fósforo apagou. Mas as velinhas começaram a subir, a subir e ela viu que eram estrelas. Uma virou estrela cadente e riscou o céu.

-Alguém deve ter morrido. A avó – única pessoa que tinha gostado dela de verdade e que já tinha morrido – sempre dizia: “Quando uma estrela caí, é sinal de que uma alma subiu para o céu”.

A menina riscou mais um fósforo e, no meio do clarão, viu a avó tão boa e tão carinhosa, contente como nunca.

-Vovó, me leva embora! Sei que você não vai mais estar aqui quando o fósforo apagar. Você vai desaparecer como a lareira, o assado e a árvore de Natal.

E foi acendendo os outros fósforos para que a avó não sumisse. Foi tanta luz que parecia dia. E a avó ali, tão bonita, tão bonita. Pegou a menina no colo e voou com ela para onde não fazia frio e não havia fome nem dor. Foram para junto de Deus.

De manhãzinha, as pessoas viram no canto entre duas casas uma menina corada e sorrindo. Estava morta. Tinha morrido de frio na última noite do ano. Nas mãos, uma caixa de fósforos queimados.

-Ela tentou se esquentar, coitadinha.

Ninguém podia adivinhar tudo o que ela tinha visto, o brilho, a avó, as alegrias de um ano novo.


Hans Christian Andersen

Neste mundo…


Neste mundo em que esquecemos
Somos sombras de quem somos,
E os gestos reais que temos
No outro em que, almas, vivemos,
São aqui esgares e assomos.

Tudo é noturno e confuso
No que entre nós aqui há.
Projeções, fumo difuso
Do lume que brilha ocluso
Ao olhar que a vida dá.

Mas um ou outro, um momento,
Olhando bem, pode ver
Na sombra e seu movimento
Qual no outro mundo é o intento
Do gesto que o faz viver.

E então encontra o sentido
Do que aqui está a esgarar,
E volve ao seu corpo ido,
Imaginado e entendido,
A intuição de um olhar.

Sombra do corpo saudosa,
Mentira que sente o laço
Que a liga à maravilhosa
Verdade que a lança, ansiosa,
No chão do tempo e do espaço.


Fernando Pessoa

LXXXIII


É BOM, amor, sentir-te perto de mim na noite,
Invisível em teu sonho, seriamente noturna,
Enquanto eu desenrolo minhas preocupações
Como se fossem redes confundidas.

Ausente, pelos sonhos teu coração navega,
Mas teu corpo assim abandonado respira
Buscando-me sem ver-me, completando meu sonho
Como uma planta que se duplica na sombra.

Erguida, serás outra que viverá amanha,
Mas das fronteiras perdidas na noite,
Deste ser e não ser em que nos encontramos

Algo fica acercando-nos da luz da vida
Como se o selo da sombra assinalasse
Com fogo suas secretas criaturas.


 Pablo Neruda, Cem sonetos de Amor

Da Dádiva


Então um homem opulento disse: “Fala-nos da dádiva.”

E ele respondeu:“Vós pouco dais quando dais de vossas posses.

É quando dais de vós próprios que realmente dais.

Pois, o que são vossas posses senão coisas que guardais por medo de precisardes delas amanhã?

E amanhã, que trará o amanhã ao cão ultraprudente que enterra ossos na areia movediça enquanto segue os peregrinos para a cidade santa?

E o que é o medo da necessidade senão a própria necessidade?

Não é vosso medo da sede, quando vosso poço está cheio, a sede insaciável?

Há os que dão pouco do muito que possuem, e fazem-no para serem elogiados, e seu desejo secreto desvaloriza suas dádivas.

E há os que têm pouco e dão-no integralmente.

Esses confiam na vida e na generosidade da vida, e seus cofres nunca se esvaziam.

E há os que dão com alegria, e essa alegria é já a sua recompensa.

E há os que dão com pena, e essa pena é o seu batismo.

E há os que dão sem sentir pena nem buscar alegria nem pensar na virtude: Dão como, no vale, o mirto espalha sua fragrância no espaço.

Pelas mãos de tais pessoas, Deus fala; e através de seus olhos Ele sorri para o mundo.

É belo dar quando solicitado; é mais belo, porém, dar sem ser solicitado, por haver apenas compreendido;

E para os generosos, procurar quem recebe é uma alegria maior ainda que a de dar.E existe alguma coisa que possais guardar?

Tudo o que possuís será um dia dado.

Dai agora, portanto, para que a época da dádiva seja vossa e não de vossos herdeiros.

Dizeis muitas vezes: “Eu daria, mas somente a quem merece”.

As árvores de vossos pomares não falam assim, nem os rebanhos de vossos pastos.

Dão para continuar a viver, pois reter é perecer.

Certamente, quem é digno de receber seus dias e suas noites é digno de receber de vós tudo o mais.

E quem mereceu beber do oceano da vida, merece encher sua taça em vosso pequeno córrego.

E que mérito maior haverá do que aquele que reside na coragem e na confiança, mais ainda, na caridade de receber?

E quem sois vós para que os homens devam expor o seu íntimo e desnudar seu orgulho a fim de que possais ver seu mérito despido e seu amor-próprio rebaixado?

Procurai ver, primeiro, se mereceis ser doadores e instrumentos do dom.

Pois, na verdade, é a vida que dá à vida, enquanto vós, que vos julgais doadores, são meras testemunhas.

E vós que recebeis – e vós todos recebeis – não assumais encargo de gratidão a fim de não pordes um jugo sobre vós e vossos benfeitores.

Antes, erguei-vos, junto com eles, sobre asas feitas de suas dádivas;

Pois se ficardes demasiadamente preocupados com vossas dívidas, estareis duvidando da generosidade daquele que tem a terra liberal por mãe e Deus por pai.”


Khalil Gibran

O Homem e o Mar


Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.

Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.

Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!

E há séculos mil, séc’ulos inumeráveis,
Que os dois vos combateis n’uma luta selvagem,
De tal modo gostais n’uma luta selvagem,
Eternos lutador’s ó irmãos implacáveis! 


Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"

Motivo


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste :
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.


Cecília Meireles

28 de junho de 2011

Sociedade

 

É um mistério para mim
Nós temos uma ambição que concordamos.
E você pensa que você tem que querer mais do que precisa.
Até você ter tudo, você não estará livre.

Sociedade, sua raça louca.
Espero que não esteja solitária sem mim.

Quando você quer mais do que tem
Você pensa que precisa.
E quando você pensa mais do que você quer
Seus pensamentos começam a sangrar.
Acho que preciso encontrar um lugar maior
Pois quando você tem mais do que imagina,
Você precisa de mais espaço.

Sociedade, sua raça louca.
Espero que não esteja solitária sem mim.
Sociedade, realmente louca
Espero que não esteja solitária sem mim.

Tem aqueles achando, mais ou menos, que menos é mais
Mas se menos é mais, como você mantém um placar?
Quer dizer que pra cada ponto que faz, seu nível cai
É como começar do topo
Você não pode fazer isso.

Sociedade, sua raça louca.
Espero que não esteja solitária sem mim.
Sociedade, realmente louca
Espero que não esteja solitária sem mim.

Sociedade, tenha piedade de mim
Espero que não fique brava se eu discordar
Sociedade, realmente louca
Espero que não esteja solitária sem mim

Música: Society
Intérprete: Eddie Vedder
Composição: Jerry Hannan

3 de maio de 2011

Ainda ontem pensava que não era...

"Ainda ontem pensava que não era mais do que um fragmento trêmulo sem ritmo na esfera da vida.
Hoje sei que sou eu a esfera, e a vida inteira em fragmentos rítmicos move-se em mim.
Eles dizem-me no seu despertar:
" Tu e o mundo em que vives não passais de um grão de areia sobre a margem infinita de um mar infinito."
E no meu sonho eu respondo-lhes:
"Eu sou o mar infinito, e todos os mundos não passam de grãos de areia sobre a minha margem."
Só uma vez fiquei mudo.
Foi quando um homem me perguntou:
"Quem és tu?" "

Khalil Gibran

25 de março de 2011

Código de Ética dos Povos Ameríndios

 Nuvem Vermelha e família (1820)

Levante-se com o Sol para orar.
Ore sozinho. Ore com freqüência.
O GRANDE ESPÍRITO o escutará, se você ao menos, falar!

Seja TOLERANTE com aqueles que estão perdidos no caminho.
A ignorância, o convencimento, a raiva, o ciúme e a avareza, originam-se de uma alma perdida.
Ore para que eles reencontrem o caminho do Grande Espírito.

Procure conhecer-se, por si mesmo.
Não permita que outros façam seu caminho por você.
É sua estrada, e somente sua!
Outros podem andar ao seu lado, mas ninguém pode andar por você!

Trate os convidados em seu lar com muita consideração.
Sirva-os com o melhor alimento, a melhor cama e trate-os com respeito e honra.

Não tome o que não é seu.
Seja de uma pessoa, da comunidade, da natureza, ou da cultura.
Se não lhe foi dado, não é seu!

Respeite todas as coisas que foram colocadas sobre a Terra.
Sejam elas pessoas, plantas ou animais.

RESPEITE os pensamentos, desejos e palavras das pessoas.
Nunca interrompa os outros nem os ridicularize, nem rudemente os imite.
Permita a cada pessoa o direito da expressão pessoal.

Nunca fale dos outros de uma maneira má.
A energia negativa que você colocar para fora no Universo, voltará multiplicada para VOCÊ !

Todas as pessoas cometem erros.
E todos os erros podem ser perdoados!

Pensamentos maus causam doenças da mente, do corpo e do espírito.
Pratique o OTIMISMO !

A NATUREZA não é para nós, ela é uma parte de nós.
Toda a natureza faz parte da nossa FAMÍLIA TERRENAL.

As CRIANÇAS são as sementes do nosso futuro.
Plante amor nos seus corações e regue com sabedoria e lições da vida.
Quando forem crescidos, dê-lhes espaço para que continuem
CRESCENDO!

Evite machucar os corações das pessoas. O veneno da dor
causada a outros, retornará à você.

Seja sincero e verdadeiro em todas as situações.
A honestidade é o grande teste para a nossa herança do Universo.

Mantenha-se equilibrado. Seu corpo Espiritual, seu corpo Mental, seu corpo Emocional e seu corpo Físico, todos necessitam ser fortes, puros e saudáveis.

Trabalhe o seu corpo Físico para fortalecer o seu corpo Mental.
Enriqueça o seu corpo Espiritual para curar o seu corpo Emocional.

Tome decisões conscientes de como você será e como reagirá.
Seja responsável por suas próprias ações.

Respeite a privacidade e o espaço pessoal dos outros.
Não toque as propriedades pessoais de outras pessoas,
Especialmente objetos religiosos e sagrados.
Isto é proibido.

Comece sendo verdadeiro consigo mesmo.
Se você não puder nutrir e ajudar a si mesmo, você não poderá nutrir e ajudar os outros.

Respeite outras crenças religiosas.
Não force as suas crenças sobre os outros.

Compartilhe sua boa fortuna com os outros.
Participe com caridade.


CONSELHO INDÍGENA INTER-TRIBAL NORTE AMERICANO
Deste conselho participam as tribos: Cherokee Blackfoot, Cherokee,
Lumbee Tribe, Comanche, Mohawk, Willow Cree, Plains Cree, Tuscarora, Sicangu Lakota Sioux, Crow (Montana), Northern Cheyenne (Montana).


E os HOMENS BRANCOS julgam-se mais civilizados e evoluídos que os ÍNDIOS!!!