5 de julho de 2010

A Realidade é atemporal, imensurável...


Uma Experiência de Bem-Aventurança
O dia estava muito quente e úmido . No parque havia muita gente estendida nos gramados ou sentada nos bancos, à sombra das arvores copadas; tomavam refrigerantes e arfavam , buscando um pouco de ar puro e fresco O céu estava plúmbeo , não havia a mais ligeira brisa , e as exalações da grande cidade mecanizada enchiam o ar . No campo devia estar adorável , pois a primavera estava já em transição para o verão . Algumas arvores já deviam estar-se enchendo de folhas novas e, pelo caminho que margeava o rio largo e faiscante , já devia haver flores de tôdas as variedades . Nos recessos das matas devia achar-se aquêle peculiar silencio em que quase se pode ouvir o nascer das coisas , e as montanhas , com seus vales profundos , deviam estar azuis e cheias de fragancias. Mas, aqui na cidade . . . !

A imaginação perverte o percebimento de o que é ; no entanto , como nos orgulhamos de nossa imaginação e de que nosso especular. A mente especulativa , com seus pensamentos complicados , não é capaz da transformação fundamental ; não é uma mente revolucionária. Vestiu-se com o que deveria ser e está seguindo o padrão de suas próprias projeções limitadas, confinantes. O que é bom não está no que deveria ser , mas na compreensão do que é. A mente tem de pôr de lado tôda a imaginação e especulação para que o Real tenha existencia.
Ele era moço ainda , mas chefe de familia e conceituado homem de negócios . Parecia muito preocupado e atribulado , e ansioso por dizer alguma coisa.

"Há tempos ocorreu-me uma experiencia verdadeiramente extraordinária , e como nunca a relatei a ninguém não sei se sou capaz de vo-la descrever com clareza ; espero que sim , pois não há ninguem mais a quem possa dirigir. Essa experiência arrebatou-me completamente o coração; entretanto , foi-se e dela só me resta a vã lembrança. Talvez possais ajudar-me a captá-la de novo . Vou relatar-vos com a possivel exatidão o que foi êsse estado abençoado . Tenho lido a respeito dessas coisas , mas tudo o que li não passava de vãs palavras , que só me falavam aos sentidos ; o que me aconteceu foi uma coisa fora da esfera do pensamento , da esfera da imaginação e do desejo , e eu a perdi. Rogo-vos me ajudeis a recupera-la." Calou-se por um instante , e continuou :

"Uma certa manhã despertei muito cedo; a cidade dormia ainda e seus rumores ainda não haviam começado . Senti-me impelido a sair; vesti-me ràpidamente e saí para a rua. Nem sequer o caminhão do leite havia começado a circular . A primavera estava no início e o céu era de um azul pálido. Apoderou-se de mim um forte sentimento de que devia ir ao parque , distante cêrca de uma milha . Desde o instante em que transpus a porta da rua vei0-me um estranho sentimento de leveza , como se estivesse camninhando no ar. O edificio fronteiro , um desgracioso conjunto de apartamentos, perdera tôda a sua fealdade ; até os tijolos pareciam vivos e luminosos. Todo o objeto insignificante , que eu de ordinário não teria notado sequer , parecia dotado de uma qualidade extraordinária , peculiar e, coisa estranha , tudo parecia parte de mim mesmo. Nada estava separado de mim; com efeito , o "eu", como observador , como percepiente , se tinha ausentado , se percebeis o que quero dizer. Não havia "eu" separado daquela árvore ou do jornal jogado na sarjeta ou das aves que chamavam umas às outras . Era um estado de consciencia que eu nunca dantes experimentara."

"No caminho do parque", prosseguiu , "havia uma loja de flores . Centenas de vêzes passei por ali e de cada vez não dava mais do que um simples relance dolhos para as flores. Mas naquela manhã parei diante da loja . A vitrine estava ligeiramente embaciada , do calor e da umidade interiores , mas isso não me impedia de ver as diversas variedades de flores . Enquanto ali estava , a contempla-las , comecei a sorrir e rir, possuído de uma alegria nunca experimentada anteriormente. As flores estavam a falar-me e eu a falar com elas ; sentia-me misturado com elas, faziam parte de mim mesmo . Ao dizer-vos isso poderei dar-vos a impressão de que me achava num estado histérico , ligeiramente privado da razão ; mas não era assim . Vestira-me com muito cuidado , perfeitamente cônscio dos meus atos , escolhendo peças limpas de vestuário , consultado o relógio , vendo os letreiros das lojas , inclusive o de meu alfaiate , e lendo os títulos dos livros expostos na vitrine de uma livraria... Tudo era vivo e eu amava tôdas as coisas . Era o perfume daquelas flôres , mas não havia "eu"a cheirar as flores , se entendeis o que quero dizer. Não havia separação entre elas e mim. Aquela loja de flores apresentava um espetáculo de cores , de uma beleza que parecia extasiante , pois o tempo e sua medida haviam cessado . Devo ter estado ali mais de vinte minutos, mas garanto-vos que não tinha noção alguma de tempo . Foi-me difícil partir de perto daquelas flores . O mundo de luta , de dor e de sofrimento era naquela hora inexistente Com efeito, num tal estado as palavras não tem significação . As palavras são descritivas , discriminativas , comparativas , mas naquele estado não existiam palavras . "Eu" não estava experimentando ; só havia um estado --- a experiência. O tempo cessara : não havia passado, presente ou futuro. Só havia --- oh ! , não sei expressa-lo por palavras , mas não importa . Havia uma Presença --- não, não é esta a palavra. Era como se a Terra, com tudo o que nela e sobre ela existe , tivesse recebido uma benção dos céus, e eu , dirigindo-me para o parque , fazia parte dela. Ao aproximar-me do parque , fiquei completamente fascinado pela beleza daquelas arvores familiares. Do amarelo pálido ao verde mais escuro, as folhas dançavam cheias de vida . Cada uma das folhas destacava-se , separadamente , e toda a riqueza da Terra se concentrava numa única folha . Senti o coração acelerar-se ; tenho um coração robusto , mas mal podia respirar ao entrar no parque , e pensei desmaiar. Sentei-me num banco , as lágrimas rolavam-me pelas faces.

Rodeava-me um silêncio verdadeiramente intolerável. Mas esse silencio estava purificando todas as coisas, lavando-as da dor e do sofrimento. Ao internar-me mais no parque , havia música no ar . Fiquei surpreso , pois não havia casas nas imediações e por certo ninguém teria levado um rádio no parque àquela hora da madrugada. A música fazia parte daquela totalidade. Tôda a bondade , tôda a compaixão do mundo estava presente naquele parque, Deus ali estava."

"Não sou teólogo nem muito religioso", continuou, "já entrei pelo menos uma dúzia de vezes numa igreja , mas isso nunca teve muita significação para mim. Não suporto o amontoado de absurdos que se presencia numa igreja . Mas naquele parque estava presente um Ser, se se pode empregar tal palavra , no qual tôdas as coisas viviam e agiam . As pernas me tremiam, forçando-me a sentar-me de nôvo, recostado numa arvore. O tronco era uma entidade viva como eu, e eu fazia parte daquela árvore, daquele Ser, do mundo . Devo ter desmaiado. Aquilo fôra excessivo para mim: as cores intensas e vivas , as folhas , as pedras, as flores, a incrível beleza de tôdas as coisas. E, por sôbre tudo aquilo , a benção de . . . "

"Quando tornei a mim já era nado o sol. Em geral levo uns vinte minutos , a pé , até o parque; mas já fazia quase duas horas que eu saíra de casa. Fisicamente , sentia-me sem forças para voltar a pé; e, assim deixei-me ficar ali, sentado, reunindo forças e sem ousar pensar. Ao voltar para casa, lentamente, levava comigo, toda inteira, aquela experiência; durou ela dois dias e, subitamente como viera , desapareceu . Começou então o meu tormento . Durante uma semana inteira não cheguei, sequer, às proximidades do meu escritório. Queria de volta aquela experiência extraordinária, viva , queria tornar a viver , e para sempre , naquele mundo beatífico . Tudo isso aconteceu há dois anos . Andei pensando sèriamente em abandonar tudo e ir-me para um recanto solitário do mundo, mas o coração me dizia que não a recuperaria por essa maneira. Nenhum mosteiro pode oferecer-me aquela experiência; não a encontrarei em nenhuma igreja cheia de velas acesas e onde só oferecem a morte e a escuridão. Pensei em partir para a Índia, mas abandonei também tal idéia. Experimentei então uma certa droga; ela me fez mais vívidas as coisas , etc, mas não é de narcóticos que eu preciso. Isso é querer comprar muito barato o "experimentar" ; e o que se tem é uma ilusão e não a coisa real."

"Aqui estou , pois", concluiu. "Tudo eu daria , minha vida e todos os meus haveres , para tornar a viver naquele mundo . Que devo fazer? "

Ele veio a vós , sem o terdes chamado , senhor. Vós nunca o procurastes. Enquanto o estiverdes procurando , não o tereis nunca. Justamente o desejo de tornar a viver aquêle estado extático , está impedindo a vinda do novo, a experiencia nova daquela suprema felicidade. Vêde o que aconteceu : tivestes aquela experiencia e estais vivendo agora da lembrança morta de ontem . "O que foi" está impedindo a vinda do nôvo.

"Quereis dizer que devo pôr de fora e esquecer tudo o que foi e ir arrastando de dia em dia esta insignificante existência, interiormente esfomeado?"

Se não continuardes a relembrar e a pedir mais --- o que constitui um verdadeiro esforço --- será então possivel que aquela mesma coisa que escapa interiamente ao vosso controle , atue por sua vontade própria. A avidez , mesmo com um alvo sublime, só pode gerar sofrimento ; a ânsia de mais abre a porta ao tempo. Aquela bem-aventurança não pode ser comprada por nenhum sacrificio , nenhuma virtude , e nenhuma droga. Ela não é uma recompensa , um resultado. Vem espontaneamente; não a busqueis .

"Mas aquela experiência foi real, veio da esfera do Sublime?"

Sempre queremos que outra pessoa confirme um fato ocorrido, nos dê certeza a respeito dêle, para ficarmos abrigados nesta certeza . Tornar-se certo ou seguro em relação ao que foi, ainda que tenha sido o Real , significa fortalecer o irreal e gerar a ilusão . Trazer para o presente o que passou --- agradável ou desagradável --- é fechar a porta ao Real . A Realidade não tem continuidade. Ela existe momento por momento; é atemporal , imesurável.



Krishnamurti

Extraido do livro Reflexões sobre a Vida de J. Krishnamurti - Editora Cultrix - 1972

Nenhum comentário: