13 de abril de 2009

A Coisa


Tinha cabeça de ponte
Cabelo de relógio
Testa de ferro
Cara-metade
Ouvidos de mercador.
Um olho d'água
Outro da rua
Pestana de violão
Pupilas do Sr. Reitor
Nariz de cera
Boca de siri
Vários dentes de alho
E um de coelho
Língua de trapo
Barba-de-milho
E costeletas de porco.
Tinha garganta de montanha
Um seio da pátria
Outro da sociedade
Braços de mar
Cotovelos de estrada
Uma mão-de-obra
Outra mão boba
Palmas de coqueiros
Dois dedos de prosa
Um do destino
E unha de fome.
Tinha corpo de delito
Tronco de árvore
Algumas juntas comerciais
E outras de bois.
Barriga de revisão
Umbigo de laranja
Cintura de vespa
Costas d'África
Pernas de mesa
Canela em pó
Um pé-de-moleque
Outro de vento
E plantas de arquitetura

COMO A COISA SE VESTIA

A Coisa usava
Carapuça de política
Lentes de Medicina
Camisa de onze varas
Com colarinho de chope
Fraldas de montanha
Punhos de campeão
E botões de rosa
Tinha gravata de "jiu-jitsu"
Um terno olhar
De pano do rosto
Com uma manga espada
E outra manganão
Tinha um capote de bisca
Usava anéis de Saturno
Luvas de contrato
"Shorts" cinematográficos
De fazenda agrícola
Bota-fora
Com saltos das sete quedas
E cordão carnavalesco
Usava liga metropolitana
Uma meia-lua
Outra meia-noite
Além do que se penteava
Com um pente de balas
E se envolvia toda
Num lençol d'água.

O MOVIMENTO DA COISA

Tinha porte de armas
Ares da serra
Tic de relógio
Movimento revolucionário
Andar de edifício
Animação cinematográfica
Passo de montanha
Ação judicial
Cadência musical
Marcha carnavalesca
Corrida de aço
Parada militar
Dava saltos de sapato
Soco no sereno
Pontapé na lua
Pulos do nove
E dançava na corda bamba
A dança de São Guido.

A AUTÓPSIA DA COISA

Tinha espírito de porco
Cérebro mecânico
E miolo de pão
Coração materno
Maus bofes
Estomago forrado
Bacia do Amazonas
Tripas de Judas
Nervos de aço
Sangue de barata
Artérias da cidade
E ossos do ofício.

O CARDÁPIO DA COISA

Refeição Matinal
Xá da Pérsia
Café concerto
Leite de colônia
Pão nosso de cada dia
Manteiga derretida
Maçã do rosto
Ovo de Colombo
Sal da terra.

Almoço
Arraia miúda
Pés-de-galinha
Pastéis tipográficos
Brotinhos (cozidos em fogo-fátuo)
Suco pancreático.

Sobremesa
Suspiros de amor
Balas Dum-Dum
Laranja da China.

Ao Deitar
Chá de sumiço
Fumo da Arrogância.

ONDE A COISA MORAVA

A Coisa morava
Numa casa-forte
Construída com paredes de grevistas
Onde o diabo perdeu as botas.
Tinha um quarto crescente
(Com um leito de rio)
E vários de hora.
Na Copa do Mundo
Havia uma cortina de ferro
E outras de fumaça.
O chão era de tacos de bilhar.
E o teto tinha uma telha de menos.
Uma mesa redonda
Uma cadeira elétrica
E várias dos quadris.
A casa era iluminada por velas de navio
Tinha um toca-discos voadores
E era adornada com telas de arame
Um espelho de virtudes
Vários vasos de guerra
E um vaso de sangue
Com a flor dos anos.


Millôr Fernandes

Texto extraído do livro "Tempo e Contratempo", Edições O Cruzeiro - Rio de Janeiro, 1954, pág.13.

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