20 de janeiro de 2009

Os deslimites da palavra


Explicação Desnecessária
Na enchente de 22 a maior de todas as enchentes
do Pantanal, canoeiro Apuleio vogou 3 dias e 3
noites por cima das águas, sem comer sem dormir -
e teve um delírio frásico. A estórea aconteceu que
um dia remexendo papéis na Biblioteca do Centro
de Criadores da Nhecolândia, em Corumbá, dei com
um pequeno Caderno de Armazém, onde se anotavam
compras fiadas de arroz feijão fumo etc. Nas últimas
folhas do caderno achei frases soltas, cerca de
200. Levei o manuscrito para casa. Lendo as frases
com vagar imaginei que o desolo a fraqueza e o
medo talvez tenham provocado, no canoeiro, uma
uma ruptura com a normalidade. Passei anos penteando
e desarrumando as frases. Desarrumei o melhor que
pude. O resultado ficou esse. Desconfio que, nesse
caderno, o canoeiro voou fora da asa.

Dia Um

1.1
Ontem choveu no futuro .
Águas molharam meus pejos
Meus apetrechos de dormir
Meu vasilhame de comer.
Vogo no alto da enchente à imagem de uma rolha.
Minha canoa é leve como um selo.
Estas águas não têm lado de lá.
Daqui só enxergo a fronteira do céu.
(Um urubu fez precisão em mim?)
Estou anivelado com a copa das árvores .
Pacus comem frutas de carandá nos cachos.

1.2
Eu hei de nome Apuleio .
Esse cujo eu ganhei por sacramento.
Os nomes já vêm com unha?
Meu vulgo é Seo Adejunto - de dantes cabo-adjunto
por servimentos em quartéis.
Não tenho proporções para apuleios.
Meu asno não é de ouro.
Ninguém que tenha natureza de pessoa pode esconder
as suas natências.
Não fui fabricado de pé.
Sou o passado obscuro destas águas?

l.3
Eu vim pra cá sem coleira, meu amo.
Do meu destino eu mesmo desidero.
Não uso alumínio na cara.
Quando cheguei neste lugar -
Só batelão e boi de sela trafegavam.
Aqui só dava maxixo e capivara.
Mosquito usava pua de 3/4 .
Falo sem desagero.
Desculpe a delicadeza.
Meu olho tem aguamentos.
(Fui urinado pelas ovelhas do Senhor?)

1.4
Insetos cegam meu sol.
Há um azul em abuso de beleza.
Lagarto curimpãpã se agarrou no meu remo.
Os bichos tremem na popa.
Aqui até cobra eremisa, usa touca, urina na fralda.
Na frente do perigo bugio bebe gemada.
Periquitos conversam baixo.
................................................................
Sou puxado por ventos e palavras.
(Palestrar com formigas é lindeiro da insânia?)

1.5
Eu sei das iluminações do ovo .
Não tremulam por mim os estandartes.
Não organizo rutilâncias
Nem venho de nobrementes .
Maior que o infinito é o incolor.
Eu sou meu estandarte pessoal.
Preciso do desperdício das palavras para conter-me.
O meu vazio é cheio de inerências.
Sou muito comum com pedras.
..........................................
(O que está longe de mim é preclaro ou escuro?)

1.6
Tenho o ombro a convite das garças.
.............................
...........................
(Tirei as tripas de uma palavra?)
...................................
A chuva atravessou um pato pelo meio.
...................................
Eu tenho faculdade pra dementes?
...................................
A chuva deformou a cor das horas.
...................................
A placidez já põe a mão nas águas.

1.7
Do que não sei o nome eu guardo as semelhanças.
Não assento aparelhos para escuta
E nem levanto ventos com alavanca.
(Minha boca me derrama?)
Desculpem-me a falta de ignorãças.
Não uso de brasonar.
Meu ser se abre como um lábio para moscas.
Não tenho competências pra morrer.
O alheamento do luar na água é maior do que
o meu.
O céu tem mais inseto do que eu?

Segundo Dia

2.1
Não oblitero moscas com palavras.
Uma espécie de canto me ocasiona.
Respeito as oralidades.
Eu escrevo o rumor das palavras.
Não sou sandeu de gramáticas.
Só sei o nada aumentado .
Eu sou culpado de mim.
Vou nunca mais ter nascido em agosto.
No chão de minha voz tem um outono.
Sobre meu rosto vem dormir a noite.

2.2
Lugar sem comportamento é o coração.
Ando em vias de ser compartilhado.
Ajeito as nuvens no olho.
A luz das horas me desproporciona.
Sou qualquer coisa judiada de ventos.
Meu fanal e um poente com andorinhas.
Desenvolvo meu ser até encostar na pedra.
Repousa uma garoa sobre a noite.
Aceito no meu fado o escurecer.
No fim da treva uma coruja entrava.

2.3
Escuto a cor dos peixes.
Essa vegetação de ventos me inclementa.
(Propendo para estúrdio?)
O escuro enfraquece meu olho.
Ó solidão, opulência da alma!
No ermo o silêncio encorpa-se.
A noite me diminui.
Agora biguás prediletam bagres.
Confesso meus bestamentos.
Tenho vanglória de niquices.
.............................
(Dou necedade às palavras?)

2.4
Um besouro se agita no sangue do poente.
Estou irresponsável de meu rumo.
Me parece que a hora está mais cega.
Um fim de mar colore os horizontes .
Cheiroso som de asas vem do sul.
Eis varado de abril um martim-pescador!
(Sou pessoa aprovada para nadas?)
Quero apalpar meu ego até gozar em mim.
Ó açucenas arregaçadas.
Estou só e socó.

2.5
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

2.6
As sujidades deram cor em mim.
Estou deitado em compostura de águas.
Na posição de múmia me acomodo.
Não uso morrimentos de teatro.
Minha luta não é por frontispícios .
O desenho do céu me indetermina.
O viço de um jacinto me engalana.
O fim do dia aumenta meu desolo.
Às vezes passo por desfolhamentos.
Vou desmorrer de pedra como um frade.

2.7
O ocaso me ampliou para formiga.
Aqui no ermo estrela bota ovo.
Melhoro com meu olho o formato de um peixe.
Uma ave me aprende para inútil.
A luz de um vagalume se reslumbra.
Quero apalpar o som das violetas.
Ajeito os ombros para entardecer.
Vou encher de intumências meu deserto.
Sou melhor preparado para osga.
O infinito do escuro me perena.

Terceiro Dia

3.1
Passa um galho de pau movido a borboletas:
Com elas celebro meu órgão de ver.
Inclino a fala para uma oração .
Tem um cheiro de malva esta manhã.
Hão de nascer tomilhos em meus sinos.
(Existe um tom de mim no anteceder?)
Não tenho mecanismos para santo .
Palavra que eu uso me inclui nela.
Este horizonte usa um tom de paz.
Aqui a aranha não denigre o orvalho.

3.2
Espremida de garças vai a tarde.
O dia está celeste de garrinchas.
A cor de uma esperança me garrincha.
Engastado em meu verbo está seu ninho.
O ninho está febril de epifanias.
(Com a minha fala desnaturo os pássaros?).
Um tordo atrasa o amanhecer em mim.
Quero haver a umidez de uma fala de rã.
Quero enxergar as coisas sem feitio.
Minha voz inaugura os sussurros.

3.3
Este ermo não tem nem cachorro de noite.
É tudo tão repleto de nadeiras.
Só escuto as paisagens há mil anos.
Chegam aromas de amanhã em mim.
Só penso coisas com efeitos de antes.
Nas minhas memórias enterradas
Vão achar muitas conchas ressoando. . .
Seria o areal de um mar extinto
Este lugar onde se encostam cágados?
Deste lado de mim parou o limo
E de outro lado uma andorinha benta.
Eu sou beato nesse passarinho.

3.4
O azul me descortina para o dia.
Durmo na beira da cor.
Vejo um ovo de anu atrás do outono.
...................................
(Eu tenho amanhecimentos precoces?)
...................................
Cresce destroço em minhas aparências.
Nesse destroço finco uma açucena.
(É um cágado que empurra estas distâncias?)
A chuva se engalana em arco-íris.
Não sei mais calcular a cor das horas.
As coisas me ampliaram para menos.

3.5
A lua faz silêncio para os pássaros,
- eu escuto esse escândalo!
Um perfume vermelho me pensou.
(Eu contamino a luz do anoitecer?)
Esses vazios me restritam mais.
Alguns pedaços de mim já são desterro.
......................................
(É a sensatez que aumenta os absurdos?)
De noite bebo água de merenda.
Me mantimento de ventos.
Descomo sem opulências. . .
Desculpe a delicadeza.

3.6
Nuvens me cruzam de arribação.
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Eu sou muitas pessoas destroçadas.
...............................
...............................
Diviso ao longe um ombro de barranco.
E encolhidos na areia uns jaburus.
Chego mais perto e estremeço de espírito.
Enxergo a Aldeia dos Guanás.
Imbico numa lata enferrujada.
Um sabiá me aleluia.

Fim.

Manoel de Barros

Texto extraído do "Livro das Ignorãnças"

3 comentários:

Márcio Almeida Júnior disse...

Li e reli, como se tivesse lido pela primeira vez. Parabéns.

Nathália disse...

Olá, peço que, se possível, divulgue o site do poeta Ulisses Tavares (www.ulissestavares.com.br) em seu blog.
Mandando um email para nós você concorre a um livro por semana do escritor!
Desde já agradeço a gentileza.

Abraços!

Raquel Mendonça disse...

Obrigada Márcio.
Ler um Manoel de Barros é assim mesmo.

E Nathália, vou divulgar sim!

Abraços