22 de novembro de 2008

Pipi-Poesia


Há muitos anos, quando era médico dos operários de uma fábrica que ficava perto de Santo André, eu fazia o percurso de São Paulo até lá por meio de trem suburbano, que apanhava na Estação da Luz. Cada uma dessas viagens (ida e volta) era um mergulho enriquecedor e aprofundador naquilo que já chamei de saldos de povo que existem em mim, apesar de tudo. Quando ia para a fábrica, pegava o trem das seis e trinta da manhã. Meus companheiros de viagem eram quase que exclusivamente operários e comerciários.

Certa manhã, sentei-me diante de uma mulher de uns quarenta anos, operária, e de um garoto de dezoito anos, seu filho, comerciário. Suas profissões vim a saber ao fim da viagem, quando trocamos algumas palavras. O que pretendo contar é o diálogo havido entre os dois, mãe e filho, à minha frente, falando alto e com a intensidade do amor em crise.

O rapaz queria saber a opinião da mãe sobre o caderno de poemas que tinha escrito e que lhe dera para ler na véspera.

- Bonitos. Muitos não entendi. Mas me deu medo ….

- Medo? Por que medo, mãe?

- Você gosta mais de escrever poesias do que trabalhar no escritório, não gosta?

- Gosto muito mais. Quer dizer, não gosto de trabalhar no escritório e adoro escrever poesias… Vou ser sincero: às vezes, lá no escritório, fico escrevendo uns versos… .

- Você vai acabar perdendo o emprego, filho. Está vendo por que eu disse que tinha medo?

- Mas é uma coisa assim que vem de dentro de mim; não dá pra controlar: ou faz ou arrebenta. Sabe, assim como vontade de fazer pipi… Mas é do jeito da vó, lembra, quando ela tinha aquela doença de velhice. e fazia pipi na cama, na sala, na rua, onde estivesse …

- Me explica uma coisa: se você trabalha de dia, estuda de noite, joga bola sábado de tarde e domingo de manhã, namora domingo de tarde e de noite, a vontade de fazer esse tal de pipi-poesia interrompe o que você estiver fazendo, onde estiver, mesmo, como sua vó?

- Não. Só faço pipi igual à vó quando tou no escritório e nas aulas.

- Eu desconfiava. Você vai acabar perdendo o emprego…

- Arranjo outro…

- Se o negócio do pipi continua, você perde esse emprego também, e o outro, e o outro …

- É, a senhora tem razão, pode acontecer, é …

- E acaba reprovado na escola. Acaba também não sendo ninguém, feito nós …

- Mas serei um poeta!

- Poeta?

- É, poeta! Tem muito poeta no mundo.

- Tem, tem, eu sei. Mas tudo morrendo de fome. desempregado …

- Nem todos, mãe …

- Pega um jornal de domingo, filho, pega a parte de anúncios classificados, espia direito, e vê se tem algum anúncio oferecendo emprego pra poeta!

- Não tem, não preciso ver, eu sei que não tem.

- E então?

O rapaz virou o rosto para o vidro, parecendo estar olhando a paisagem feia, amarga e triste do subúrbio paulistano, mas talvez não tão feia, tão amarga e triste quanto deviam ser os seus pensamentos e sentimentos naquele momento, supunha eu, tirando por mim. A mãe, com jeito sofrido, angustiado, como que cumprindo um dever de responsabilidade, insistiu, agora em tom baixo e cuidadoso, pois devia conhecer a sensibilidade do filho:

- E então, meu filho?

Sem se voltar - e eu o imagino vendo a feia paisagem suburbana passando veloz diante de seus olhos e se deformando e diluindo nas lágrimas que continha, envergonhado, além de tudo -, respondeu mais para dentro do que para fora:

- Você tem razão, mãe. Vou parar com a poesia. Não estou velho e doente como a vó, vou dar um jeito de não ficar mais mijando minhas poesias nas calças… por aí…

- É, filho, tenho pena, as coisas não tinham de ser assim, mas são. A gente não pode fazer o que gosta, ainda mais quando o que gosta é poesia…

E sorriu. Abraçou o filho. Beijou-o na testa. Ele virou o rosto para mim. Então vi que o menino tinha os olhos enxutos e deles escapavam chispas de ódio.


Roberto Freire

Texto publicado no livro Viva Eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu!

Um comentário:

No Palco da Vida disse...

Existem pessoas que querem ser Feliz, mas não correm muito para a Felicidade pois a encontram dentro de si mesmo. A felicidade de ver a Vida com outros olhos e com outras palavras.
É amiga eu sou como esse Poeta oculto. Que quer ser Feliz mas, mas as pessoas tentam cortam. Prefiro não ver essa barreira e continuo embelezando meus olhares. Assim Vivo plenamente. Esse texto foi esplêndido amiga, admirei. apesar do final ser triste mas me tocou.
Beijos continue assim que está de Parabéns.
Beijos Raquel fiquem com Deus